quinta-feira, 30 de julho de 2009

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A NOITE E O CAMINHO:

A POÉTICA DE AGOSTINHO NETO

..........................................................................por Anaíra Mahin e Camila Santana.


“Seguindo
o caminho das estrelas
pela curva ágil do pescoço da gazela
sobre a onda sobre a nuvem
com as asas primaveris da amizade

Simples nota musical
indispensável átomo da harmonia
partícula
germe
cor
na combinação múltipla do humano (...)”

(Agostinho Neto, no poema “Confiança”, 1976)

“Eu vivo
nos bairros escuros do mundo
sem luz nem vida.
(...)
encostado aos meus informes sonhos
tropeçando na escravidão
ao meu desejo de ser”.
(...)
Também a noite é escura.


(Agostinho Neto, no poema “Noite”, 1976)


Antônio Agostinho Neto, nascido a 17 de setembro de 1922, em Kaxicane, a uns 60 km de Luanda, foi personalidade fundamental para a luta da independência de Angola e o primeiro presidente de seu país após a conquista da soberania nacional. Médico e poeta, foi também presidente do MPLA (Movimento Popular para a Libertação de Angola) e fundador do Movimento Anticolonial. A poética de Agostinho reflete a riqueza de sua busca, o caráter artístico de sua trajetória política, seus questionamentos e respostas, assim como salienta Jorge Amado, no prefácio de Poemas de Angola (1976): “Na luta pela independência de Angola, a poesia foi arma poderosa manejada por Agostinho Neto. Na selva, tanto quanto a metralhadora, o fuzil e o facão, a poesia sustentou o ânimo e alimentou a esperança dos guerrilheiros” (NETO, 1976, p.7). Deste modo, a arma da poesia revela-se uma forma eficaz de resistência, como a Guerrilha do Araguaia, por exemplo, que produziu uma poética de autoria coletiva, publicada pela primeira vez em 1979, no jornal “Resistência”, do Pará. Vejamos um destes poemas, que segue:

CANTO DE AMOR AOS GUERRILHEIROS DO ARAGUAIA 1. não nas vossas mãos não tendes fuzis tendes clarões estrelas pedaços de manhã as vossas armas são como archotes combatendo a noite e porque acendeis o dia nós vos amamos 2. nós vos amamos - que é preciso o mais cedo madrugar
mas rompa-se à distância este nós-e-vós que nos parte em dois; não há distância quando a noite é uma quando sobre todos pesa a mesma bruma quando sobretudo a ordem é lutar

Pretendemos cá, realizar uma análise sociológica mais amorosa da poesia de Agostinho Neto, diferente das análises que minimizam sua poesia a uma poesia panfletária e datada. Este estudo se dará a partir das teorizações de Roger Bastide acerca da poesia como método sociológico e da experiência de Paulo Freire em relação à autonomia, uma vez que partimos do pressuposto da poesia (ou arte em geral) como possibilidade de uma pedagogia do oprimido. Em relação à afirmação crítica de que seria a poesia um método pedagógico, Bastide explica que “mais do que isso. A expressão poética não seria pedagógica se a sociedade nada tivesse de poética. Há, porém, na sociedade o elemento de poesia sendo a expressão poética um esforço de fidelidade em relação à própria verdade das coisas” (BASTIDE, 1983). No prefácio do mesmo livro Florestan Fernandes afirma que Bastide foge à regra das Ciências Sociais tradicionais, que condenam o subjetivismo como fonte de erro e a afetividade, levando a desvios de compreensão. Comungamos com Bastide em defender esse contrário: para nós, assim como para Bastide, o subjetivismo aparece como verdadeiro manancial de conhecimentos, que permite penetrar mais a fundo na realidade pelos caminhos da sensibilidade e da intuição.
A expressão poética das preocupações de Agostinho Neto evoca a verdade experiencial de sua luta, os porquês construídos em sua experiência social ampla. Compreende-se aqui o versar tenso dessas contradições psicossociais - quando escrita, a poesia (enquanto poema) é um recorte prismal dessas contradições, que podem ser experienciadas por nós.
Assim, a arte poética, ou a arte em geral, pode ser entendida também como método psicanalítico: pois ajuda o poeta a trabalhar seus conflitos internos, e quando é externalizada, tornando-se código, passa a poder ser experienciada por outros através de sua dimensão arquetípica. Constitui, assim, uma ferramenta de autoconhecimento, individual e social. Faz-se técnica de cura, dentro de um quadro de luta psíquica. Faz-se parceira no método sociológico: na compreensão das contradições sociais. É essa poesia uma síntese do processo cognitivo, um encontro entre o pensamento intuitivo e o domesticado de que nos fala Strauss em “O Pensamento Selvagem”. É através do que há de elementar, de universal, que a poesia pode funcionar como um método terapêutico genérico, catártico, tanto para quem expressa quanto para quem lê.
Portanto, os poemas de Neto nos trazem, como nuvens densas, uma síntese do contexto social vivido, de sua posição, de suas preocupações. A liberdade, a identidade, a esperança... Parafraseando Marcel Mauss, poderíamos aqui entender a poesia em questão como uma espécie de “fato social total”, tendo em vista a totalidade contextual sintetizada e nebulosa como consequência de algo que a envolve. Como podemos encontrar nesta poesia sua leitura de mundo, sua filosofia, sua alma afetada?... Acredito que apenas estando abertos para este experienciar.
Quando paramos para entender o contexto do mundo em questão, quais os sentimentos relativos as propostas praticas de mundo que foram se tornando hegemônicas, podemos entender como essas propostas impostas foram matando outras, e como essas mortes foram se configurando no peito das pessoas, em nosso próprio peito. Entender como essa morte existe em cada um de nós: enquanto busca, ou como negação – entender como ela nos habita.
Agostinho Neto comunga em sua poesia com aspectos centrais do tipo de Pedagogia pensado pelo o professor Paulo Freire: compartilham de pressupostos éticos que devem guiar a ação - uma ética do coração - não pressupostos moralizantes e autoritários, mas idéias que nos levam a reflexão de nossas ações tão movidas por condicionamentos que naturalizamos sem pensar. Trazem a reflexão da necessidade de que se entenda que a luta precisa ser percebida internamente - os condicionamentos, as limitações – para que possa então ser externalizada no âmbito da realização social. Ou seja, há de se tomar consciência dos processos condicionantes, do processo de socialização ao qual fomos submetidos, e isso deve servir para que possamos intervir nas estruturas compreendendo-as. Freire nos fala da importância da “legítima raiva” para a ação não resignada que promove a mudança. Alerta, no entanto, para o perigo de que essa raiva venha a tornar-se odiosidade. No poema “do povo buscamos a força” Agostinho Neto expressa essa mesma preocupação:

Não basta que seja pura e justa
a nossa causa.
É necessário que a pureza e a justiça
existam dentro de nós.
Dos que vieram e conosco se aliaram
muitos traziam sombras no olhar
intenções estranhas.

Para alguns deles a razão da luta
era o ódio: um ódio antigo
centrado e surdo como uma lança.
(...)
Outros viemos.
Lutar para nós e ver aquilo que o povo quer realizado.
É ter a terra onde nascemos.
É sermos livres pra trabalhar.
É ter pra nós o que criamos
Lutar pra nós é um destino –é uma ponte entre a descrença
e a certeza do mundo novo.
(...)
Lutar pra quê?
Pra dar vazão ao ódio antigo?
ou para ganharmos a liberdade
e ter pra nós o que criamos?
(...)

(NETO, 1976, p.49-50)

No mesmo poema Neto trava um diálogo com outros grupos que também engrenavam a “luta de libertação de Angola”: a UNITAS, de Savimbi, e a FNLA, de Holden Roberto. Neto coloca em pauta as contradições que traziam esses dois movimentos, que lutavam pela liberdade nacional, mas que estavam ligados a modelos extremamente opressores. A liberdade que neto fala é a de criar, de ser, da diferença, no entanto, não enxerga dentro dessas propostas de mundo, as quais se aliam seus compatriotas, uma clareza ética.
Quanto a este aspecto, destacamos um trecho do poema “Criar”:

Criar criar
estrelas sobre o camartelo guerreiro
paz sobre o choro das crianças
paz sobre o suor sobre a lágrima do contrato
paz sobre o ódio
criar
criar paz com os olhos secos
(...)

Criar criar
criar amor com os olhos secos.

(NETO, 1976, p. 30-31)

É triste que dentre todas as bibliotecas da Universidade Federal de Pernambuco só tenhamos encontrado dois artigos pequenos sobre Agostinho Neto, os dois na biblioteca do Centro de Artes e Comunicação, é triste que nossa biblioteca de Filosofia e Ciências Humanas nada tenha sobre a tão sensível ‘ciência humana filosófica’ de Antônio Agostinho Neto. José Luis Pires Laranjeira foi um dos autores que encontramos em pesquisa no Google acadêmico, com bem uns 30 anos de dedicação ao estudo e interpretação de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa, escreveu muita coisa sobre Neto, tendo ajudado muito em nossa reflexão analítica da poética de Agostinho. Laranjeira acorda a importância dessa literatura como documento histórico em sua totalidade e lindeza. Em um de seus recortes, expõe esse “Agostinho Neto, poeta : comprometido com o africano, com o negro de todo o mundo, com a luta de libertação nacional e com a mulher”, fala de "um negro que falava, sobretudo para os outros negros, contra o fascismo e o colonialismo".
Quando começamos a refletir como Neto enxerga esse nacional, passamos a enxergar que dentro de sua poesia esse nacionalismo não existe nos moldes tradicionais. Percebemos, tentando entender a essência de sua poesia, que dentro desse contexto experiencial, a nação confunde-se com a não existência dela, ou, em outras palavras, o sentimento de desterro. A nação é, portanto, a própria necessidade de ser, de expor essa diferença, de poder ser no sentido amplo da palavra, material e imaterialmente, poder expressar sua forma de fazer, sua lida, sua maneira. Trazendo no mesmo bojo todas as lacunas, todo o esborrotar de águas salgadas e turvas em todo um subjugar e submeter inscrito na história. Antônio Agostinho Neto carrega o sentimento do mundo, no entanto, tinha apenas duas mãos, enfim, era um ser humano, no sentido mais belo que pode ter a palavra. Compreendendo as contradições sociais que viveu, podemos compreender um pouco mais o sentido de suas conjecturas, a finalidade delas.
Em análise do caráter nacional na poesia de Neto, vem o poema “Confiança”, onde enxergamos essa idéia de uma nação ampla, ligada pelas raízes e pela perda, em busca e diáspora oceânica:

O oceano separou-se de mim
enquanto me fui esquecendo nos séculos
e eis-me presente
reunindo em mim o espaço
condensando o tempo.

Na minha história
existe o paradoxo do homem disperso
(...)

(NETO, 1976, p.25)

Entendemos que em Neto a nação é um sentimento, a luta pela libertação da nação não é mais que a libertação das pessoas, libertação essa que independe de um estado estrutural externo. A nação está ligada a uma experienciação comum, por isso também ligada à negritude:uma palavra que tenta chegar a esse negro disperso no mundo.
Podemos, assim, pensar em uma “africanização de Marx”, pondo em pauta as leituras que Agostinho fez e de como, nesse sentido, a ligação que trava com um modelo de nação, por exemplo “o socialismo”, vem a ser mais uma estratégia política do que propriamente uma identificação total. No entanto, pensando o modelo Soviético, ou o de Cuba, dentro do quadro da geopolítica da época, é fácil entender a aproximação do MPLA, pois era importante para o movimento ter um apoio internacional, podemos pensar que era uma instrumentalização mútua, que tanto o MPLA precisava desse apoio, quanto essas potências precisavam criar novos exemplos. Em essência, a poesia militante de Neto (e não panfletária) é reflexiva, e pensa estratégias de libertação. De uma libertação ampla, dentro de um processo reflexivo que dialoga com os condicionamentos dentro das tensas histórias, dos tensos processos de opressão sofridos.
Dentro dessa idéia de uma nação desterrada e interna, difícil de ser enxergada por não se dispor na verticalização esperada pelo olho mal acostumado, eurocêntrico, Pierre Clastres, em sua Arqueologia da Violência e em A Sociedade contra o Estado, fala das nações que fugiam desses modelos opressores, que desceram às Américas livrando-se dos impérios. Creio que, da mesma forma, em essência, é esta a idéia de nação que Agostinho Neto quer-bem, essa de uma liberdade em ser, liberdade identitária das quais foram privadas esses nações que sofreram a colonização.
Ao trazer este ser e esta maneira, Neto dialoga com outros grupos que também lutavam pela libertação de Angola. Agostinho pensa sobre esse governo, mas que tipo de governo? Ainda no trecho do poema “Do povo buscamos a força”, ele questiona:

Lutar pra que?
Para dar vazão ao ódio antigo?
Ou para ganharmos a liberdade
e ter pra nós o que criamos?
Na mesma barca nos encontramos.
Quem há de ser o timoneiro?
(...)
(NETO, 1976, p.49-50)

Quem será o timoneiro?... Essa também era uma preocupação de Neto, observe-se que sua poesia fala de ética e não de moralidade, como nos fala Lao Tze em seu Tao Te Ching. Enquanto disputavam o poder em Angola, o MPLA, de Neto, a UNITAS de Savimbi, e o FNLA de Holdem Roberto, estavam todos no mesmo barco, o da libertação de Angola, mas de que maneira buscavam essa liberdade, com quais ferramentas? As criticas feitas na poesia de Neto a esses movimentos são criticas construtivas, anticapitalistas e pacifistas. Pensamos que além da mensagem ao interlocutor da época – esses homens negros que estavam no mesmo barco - O pensamento de Neto, condensado em poema, navega e nos fala agora, quando no “choro de africa” encontramos esse negro morto que nos habita, esse sentimento de perda que nos instiga a busca. -"O oceano separou-me de mim" ele diz em sua "Saudação", e conta de toda uma diáspora. E desse 'movimento' entre mares. Muito suor cor púrpura acordando em outras geografias. E, é nesse sentido de uma unidade nacional panafricanista, que essa poética comum acorda transfigurada, e o sentimento é o semelhante, busca o semelhante. Busca a arte, a arte sacra... De novos velhos cânticos, em outras línguas, na mesma - aquela do desatar interno- e o sentimento é o mesmo do outro lado do azul oceânico, e o semelhante se reprocura em outras cores e formas, entre outras formações vegetais. arqueologias de sementes. Os imbondeiros, os baobás... Os homens e mulheres que vez ou outra inda aparecem de "braços erguidos". Dentro de uma "poesia africana" espalhada e de pés descalços, de pés descalços e de pés calçados de uma espécie de saudade que movimenta. de uma esperança ativa. Nossos quilombos, nossos índios misturados, e os brancos afetados. Uma verdade está aí, a de que “todo contato afeta”, nada mais tem jeito, nada mais é igual o que era antes, e ainda o antes está em nós, e como a gente o reenxerga, o ressignifica? Tudo aconteceu e acontece. Tecemos já aqui outros textos para transformar em amor transposto, o rosto, e enxerga-lo 'numa boa', sem dor.
Portanto, a poesia que Neto nos deixou, tem a ver com esse panafricanismo, e ou, o quilombismo que nos traz o 'paulista de França' Abdias do Nascimento, falando de um o Poder Negro, de uma auto estima, de um autoconhecimento necessário para a superação. Coisa que nos leva ainda a pensar o negro interno de cada um - como a gente traz esse negro, como a gente o sente, o que ele representa.
Lendo o capitulo 4 , Sobre a Cultura Nacional de Os Condenados da Terra (1968), de Frantz Fanon, encontrei uma fala de Ahmed Sékou Touré (líder político africano e presidente da República de Guiné de 1958 até sua morte em 1984. Touré foi um dos primeiros nacionalistas guineanos envolvido na libertação do país da França) e fui pesquisar um pouco sobre ele tendo achado essa outra frase: "preferimos a pobreza em liberdade à riqueza em escravidão".
A frase me lembrou o livro do beninense Albert Tévoédjrè, Pobreza a Riqueza dos Povos - a transformação pela solidariedade (1982), nele Tévoédjrè trabalha os significados dessa Riqueza, as variáveis que a moldam, as intensões que a guiam. nesse sentido, a 'Riqueza dos Povos' é a 'pobreza' dita, não a miséria, mas a dádiva afetiva da compreensão da troca como algo imprescindível para a coexistência real no mundo.
A existência do outro além de material e externa, é interna, e dependente. Se a intenção é de comunhão, não devemos pois por a frente os aspectos que repudiamos no outro, pois sofreremos, no entanto quando elegemos a 'conversa' como proposta ética, mesmo com dificuldades de condição, nossos olhos vão buscar o uno - uno que nada tem a ver com ser igual no sentido restrito, sim com a compreensão dos porquês e respostas alheias.
Pensando a dialogia do título do livro de Frantz Fanon “Os Condenados da Terra” com o do poema “As terras sentidas” de Agostinho Neto, pensamos essa relação do homem com o seu “laboratório natural”, e o Sentimento de desterro diante desse afastamento, desse 'apartamento':

As terras sentidas de África
nos ais chorosos do antigo e do novo escravo
no suor aviltante do batuque impuro
de outros mares
sentidas
(...)
Vivas
em si conosco vivas
Elas fervilham-nos em sonhos
ornados de danças de imbondeiros sobre equilíbrios
de antílope
na aliança de tudo que vive
(...)
na razão pura e simples da existência das estrelas
Elas vivem
as terras sentidas de África
porque nós vivemos
e somos as partículas imperecíveis
e inatacáveis
das terras sentidas de África

(NETO, 1976, p. 26-27)



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CAMPOS, Libério de. Poesias da Guerrilha do Araguaia. Disponível em: <http://www.midiaindependente.org/pt/blue/2004/09/291383.shtml>. Acesso em: 10 de junho de 2009.
FANON, Frantz. Os condenados da terra. Rio de Janeiro: Basiliense, 1968.
NASCIMENTO, Abdias do. O Quilombismo: documentos de uma militância pan-africanista. Petrópolis: Vozes, 1980.
NETO, Agostinho. Poemas de Angola. Rio de Janeiro: Codecri, 1976.
TÉVOÉDJRÈ, Albert. A Pobreza, Riqueza dos Povos: A transformação pela solidariedade. Petrópolis: Vozes, 1982.
STRAUSS, Leví. O Pensamento Selvagem.
MAUSS, Marcel. Ensaio Sobre a Dádiva.
CLASTRES, Pierre. Arqueologia da Violência.
CLASTRES, Pierre. A Sociedade contra o Estado.
TSÉ, Lao-. Tao Te Ching. São Paulo: Martin Claret, 2006.